A primeira obra impressa de um brasileiro

As histórias das literaturas nacionais gostam das obras e dos autores que foram os primeiros em alguma coisa: os primeiros documentos da língua, a obra que inaugura um género literário, a primeira criação de um autor, o primeiro texto impresso de uma literatura, etc. Gostam de prioridades, mas gostam ainda mais de antedatações. Vamos apresentar mais uma destas.

Número 119  ·   21 de Novembro de 2007  ·   Suplemento do JL n.º 969, ano XXVII

Enrique Rodrigues-MouraA primeira obra literária impressa de autor nascido no território do actual Brasil não é, como se pensava até agora, o livro de poemas Música do Parnaso (Lisboa 1705), mas sim a peça Hay amigo para amigo (Coimbra 1663). Esta considerável antedatação não afecta o autor, que é o mesmo para ambas as obras: Manoel Botelho de Oliveira (Salvador da Bahia, 1636-1711).

Inicialmente, seguindo o bibliógrafo Barbosa Machado, pensava-se que o primeiro «brasileiro» com obra publicada fora o poeta Bento Teixeira, autor da Prosopopeia, editada em Lisboa em 1601. Mas Gilberto Freyre identificou-o com um cristão-novo do mesmo nome, que teria nascido no Porto, não sendo, portanto, «brasileiro» de origem. Pesquisas posteriores de Rodolfo Garcia, José Galante de Sousa e José Antônio Gonçalves de Melo confirmaram tais suspeitas e Pedro Calmon observou que o final de uma das estrofes da Prosopopeia, bem lido, já informava sobre a natalidade do autor: Mas o Senhor que assiste na alta Cúria / Um mal atalhará tão violento, / Dando-nos brando Mar, vento galerno, / Com que vamos no Minho entrar paterno (estr. LXVI).

As atenções voltaram-se então para um livro poliglota de Botelho de Oliveira, cujos poemas portugueses foram editados por Afrânio Peixoto em 1928: a Música do Parnaso dividida em quatro coros de Rimas portuguesas, castelhanas, italianas & latinas. Com seu descante cómico reduzido em duas Comédias - que tinha sido publicada em Lisboa em 1705. O «descante cómico» refere-se a duas peças de teatro em castelhano que fecham o livro: Hay amigo para amigo e Amor, engaños y celos. Na dedicatória, afirmava Botelho: «Ditaram as Musas as presentes Rimas, que me resolvi a expor à publicidade de todos, para ao menos ser o primeiro filho do Brasil que faça pública a suavidade do metro, já que o não sou em merecer outros maiores créditos na Poesia.». A afirmação é taxativa, e feita por um contemporâneo cultural de Bento Teixeira, pois ambos frequentaram o Colégio dos Jesuítas em Salvador. Seria muito improvável que Botelho de Oliveira assumisse falsamente a primazia, nestas circunstâncias. Da edição princeps da Música do Parnaso há catorze exemplares, conservados em bibliotecas públicas ou particulares do Brasil (Rio de Janeiro e São Paulo), Portugal (Lisboa e Porto) e Inglaterra (Londres).

Quando Botelho de Oliveira dizia ser o primeiro filho do Brasil que fazia «pública a suavidade do metro», estava ciente de que Diogo Gomes Carneiro, nascido possivelmente em Cabo Frio (Rio de Janeiro), já havia publicado em 1641 uma obra política - Oração Apodixica aos Cismáticos da Pátria - e várias traduções: História da Guerra dos Tártaros (1657), História do Capuchino Escocês (1657) e Instrução para bem crer, e em obrar, e bem pedir (1674). Nos preliminares da sua tradução da História do Capuchino Escocês, Gomes Carneiro publicara três breves poemas circunstanciais em português, latim e italiano. Também havia publicado um epigrama latino de seis versos no volume Memórias Fúnebres, que se compilou em 1650 para lembrar a memória de D. Maria de Atayde, com a participação de um importante grupo de intelectuais da época, como António Vieira, Barbosa Bacelar, Violante do Céu e Francisco Manuel de Melo. Mas esses quatro poemas não constituíam um livro, nem tinham o peso literário da Música de Botelho de Oliveira.

Lendo com atenção o «Prólogo ao leitor» de Música do Parnaso, Francisco Adolfo de Varnhagen, Manuel Sousa Pinto e Rubens Borba de Moraes notaram que Botelho de Oliveira assinalara que a peça Hay amigo para amigo andava «impressa sem nome» e que Amor, engaños y celos saía «novamente escrita». E ele não mentia. «Novamente» significava, na época, «ex novo, pela primeira vez»; logo a comédia Amor, engaños y celos só podia ter sido escrita pouco antes da publicação em 1705. Mas o mesmo não era dito de Hay amigo para amigo, que na realidade tinha sido publicada muito antes, de forma anónima, em Coimbra, na imprensa de Tomé Carvalho, no ano de 1663. Por essa época o jovem Botelho de Oliveira estudava na universidade - onde coincidiu durante três anos com o também baiano Gregório de Matos - e começava a compor versos em várias línguas, prazer que o acompanhou até o fim dos seus dias, em 1711. De Hay amigo são conhecidos dois exemplares de 1663, um na Biblioteca Nacional de Lisboa e outro na Biblioteca do Institut del Teatre de Barcelona, que tive a grata surpresa de localizar e identificar.

O motivo da ausência da comédia em todas as bibliografias luso-brasileiras merece ser explicado. Visto que ela se publicou de forma anónima e que o título completo do livro de 1705 (Música do Parnaso...) não inclui o título das duas comédias, nenhum catálogo bibliográfico relacionou nos seus índices o autor (Botelho de Oliveira) com a sua obra. Acresce que as tradições bibliográficas hispânicas e luso-brasileiras não são, em geral, complementares e comunicantes. O bibliógrafo espanhol Cayetano Alberto de la Barrera y Leirado, autor do Catálogo bibliográfico y biográfico del teatro antiguo español (1860), confirma a existência de Manuel Botello (castelhanizando o sobrenome do poeta baiano) de Oliveira - e cita as suas duas obras teatrais. Esta «castelhanização» nominal não é, aliás, anormal na tradição bibliográfica ibérica. Exemplos não faltam: Jorge de Montemor assinou Los siete libros de la Diana como Jorge de Montemayor. Já no século XVII, o poeta português Miguel Botelho de Carvalho publicou em Espanha com o nome Botello de Carvallo. Também Jacinto Cordeiro, no Elogio de Poetas Lusitanos al Fénix de España Fr. Lope Félix de Vega Carpio, en su laurel de Apolo por el Alférez Jacinto Cordero (Lisboa, 1631), castelhanizou o seu próprio apelido. Em contrapartida, mais adiante lusitaniza o nome do poeta espanhol: Lope de Vega passa a ser Lopo de Veiga. Foi assim que o autorizado La Barrera assumiu uma praxe ortográfica herdada e ainda em vigor na sua época, obviamente sem cogitar que estava a criar um problema com a invenção do poeta Botello. O exemplo mais flagrante dessa dualidade nominal encontra-se nas três edições do Índice Biográfico de España, Portugal e Iberoamérica (IBEPI) (1990, 1995 e 2000), onde comparecem - às vezes lado a lado na mesma página - o poeta Botelho de Oliveira e o poeta Botello de Oliveira.

Assim, voltando ao duvidoso valor literário das precedências bibliográficas, podemos continuar a afirmar que Manoel Botelho de Oliveira é o primeiro autor nascido em território pertencente ao actual Brasil que teve a sorte de ver impressa uma obra literária da sua autoria. Mas a obra que lhe permite ostentar essa dignidade bibliográfica não é, como se pensava, a colectânea Música do Parnaso (1705), e sim a comédia de capa e espada Hay amigo para amigo (1663), escrita em castelhano e publicada em Coimbra durante os seus anos de estudante. Esses são os dados, por agora.

 

Enrique Rodrigues-Moura                    

 

Enrique Rodrigues-Moura é Doutor em Filologia Românica pela Universidade Complutense de Madrid e trabalha no Departamento de Filologia Românica da Universidade de Innsbruck (Áustria). Investiga na área das literaturas ibéricas e a sua projecção nas Américas. Foi por duas vezes bolseiro do Instituto Camões (2000/01 e 2003); no decurso de uma dessas bolsas, efectuou a descoberta de que dá conta neste artigo.

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