As três vidas de uma pintura

Exposição de Deolinda Fonseca no CCP/IC do Luxemburgo

É uma exposição de pintura, mas não é apenas uma exposição de pintura. Flutuações, da pintora Deolinda Fonseca, portuense radicada há 30 anos na Dinamarca, que vai estar patente de 5 a 27 de Março no Centro Cultural Português/Instituto Camões do Luxemburgo, onde regressa depois de uma ausência de sete anos, promete ser um desses casos em que no diálogo entre várias linguagens plásticas independentes se produz um resultado a um tempo inesperado, inovador e decantado.

Número 136   ·   11 de Março de 2009   ·   Suplemento do JL n.º 1003, ano XXVIII

Deolinda FonsecaDepois de «trabalhadas» e projectadas pelas «animações digitais» de Lars Brok (professor na Escola Nacional de Cinema da Dinamarca e especialista em efeitos visuais), dir-se-ia que as pinturas de Deolinda Fonseca sobre seda - o ponto de partida - ganham a sua ‘verdadeira\' expressão e dão origem a «obras distintas», segundo se intui de um texto sobre a exposição da historiadora e curadora de arte Laura Castro.

A «animação de formas, cores, fragmentos, recriações, permutações da pintura, acaba por dar uma visão plena do comportamento específico da própria seda pintada. De facto, aí tudo é etéreo e fugidio, nada se fixa ou detém na substância fluida do suporte que continuamente se altera. No entanto, só depois de vermos a animação, se percebe até que ponto isso é verdade, porque ela corporiza essas características, dá-lhes uma outra visibilidade, uma evidência que, dir-se-ia, nem a pintura sobre seda possui sobre si própria», escreve num texto intitulado O transporte das imagens, Laura Castro, a principal especialista portuguesa na obra de Deolinda Fonseca.

Laura Castro faz assim alusão à expressão da própria pintora, segundo a qual «a seda é uma forma de transporte de imagens», na medida em que se usa, se adapta ao corpo e é portátil, conforme a explicação da historiadora, que é autora de artigos e livros sobre arte portuguesa dos séculos XIX e XX e que tem trabalhado desde a década de 90 em museus municipais de Matosinhos e do Porto.

Logo na pintura (a «existência primeira») em seda - a «criação segunda» que, segundo Laura Castro, Deolinda Fonseca vem experimentando desde os anos 80 -, a artista plástica remete-nos «para uma história de práticas e de usos antigos da matéria têxtil, entre o artístico e o utilitário». No entanto, refere a crítica de arte, «no diálogo entre duas linguagens artísticas tão distantes em termos artesanais, oficinais, tecnológicos e conceptuais, linguagens fundadas em quadros culturais e civilizacionais afastados, instaura-se [...] uma curiosa proximidade».

Este tipo de associações em que a criação de imagens recorre a «suportes e meios distintos daqueles que a pintura utiliza» não é nova. Ameaçando-a com a extinção, como aconteceu com o aparecimento da fotografia e do cinema no século XIX, esses novos meios acabaram por ‘adoptar\' a pintura, quer integrando-a com adereço quer usando-a como inspiração referencial, segundo Laura Castro. Uma terceira abordagem, de «consequências mais vastas para ambos os registos», é «marcada pelo entendimento interior e pela correspondência íntima, em que a pintura pode funcionar como matéria-prima para obras distintas».

É o que acontece no projecto Flutuações, no dizer da historiadora de arte, com a associação de pintura sobre seda, «a que se reuniu a cumplicidade das animações digitais». Desta sobreposição de registos resulta aquilo que Laura Castro descreve como uma maior limpidez da expressão de cada um deles. «É como se a imagem projectada adquirisse uma nova dimensão, não por ser mais realista e rigorosa do que a pintura, não por pretender simular o que quer que seja, mas por assumir os elementos essenciais da pintura sobre seda e conseguir a sua transfiguração e exaltação. O facto de cada produção conservar a sua identidade, não as impede de mutuamente se iluminarem e expandirem. Uma expressão dá-se a ver através de outra.»

Deolinda Fonseca é uma artista plástica que estudou na Escola de Belas Artes do Porto nos anos 70 com nomes como Francisco Laranjo e Sobral Centeno, com quem tem exposto ao longo dos anos, apesar de não constituírem uma qualquer escola artística.

O expatriamento influenciou a sua pintura, «sendo o reflexo das suas raízes portuguesas fortemente perceptível nos seus quadros, sob a forma de recordação nostálgica, em especial na sua obra figurativa», escrevia em 2004 o suplemento do IC no JL.