Colmatar o hiato

Número 140   ·   1 de Julho de 2009   ·   Suplemento do JL n.º 1011, ano XXIX

  

Língua Portuguesa em Goa

A conversa dura mais de uma hora. E depois de tudo “espremido”, a conclusão é de que a caracterização da situação da língua portuguesa e do ensino do Português em Goa, um Estado indiano que foi colónia portuguesa até 1961, não pode ser feita de uma penada.

Encarte‘Afinal quantas pessoas falam português?’ «Milhares!», mas «não há fontes fidedignas relativamente ao número de falantes» e «é preciso determinar a que nível» - compreensão escrita, compreensão oral, leitura…, responde à pergunta inevitável Delfim Correia da Silva, 44 anos, leitor do Instituto Camões (IC) na Universidade de Goa (UG) e responsável pelo Centro de Língua Portuguesa em Pangim, a capital do Estado.

Os alunos de Português não são muitos, objecta-se. Todavia, há uma «grande curiosidade» por Portugal e mesmo «fascínio» entre os jovens, que «tentam um pouco confrontar aquilo que os avós contavam de Portugal e aquilo que eles sabem que existe hoje», sublinha o docente universitário português, na sua segunda missão na Índia, desde Abril de 2008, depois de ter leccionado entre 1995 e 2001 na Universidade Jawaharlal Nehru, de Nova Deli, com uma passagem entre 2002 e 2006 por Sófia, na Bulgária.

E em abono dessa observação, refere: «uma das perguntas mais frequentes é: ‘o que é que eu devo fazer para estudar em Portugal?’ ‘Acabei a minha licenciatura, acabei o meu bacharelato, acabei o secundário, o liceu, quero estudar em Portugal’». Estes jovens exprimem o desejo em inglês. A resposta só pode ser: «Primeiro, devem aprender português. Inscrevam-se nos cursos do Centro de Língua».

Delfim Correia da Silva regista no dia-a-dia reacções de simpatia em relação a Portugal e à língua portuguesa, mas reconhece que o tema do futuro do português em Goa é «complexo e delicado» e «exige um esforço conjunto» de várias entidades.

EncarteA grande questão é: ‘será que se está a perder o português em Goa?’ «Por razões óbvias, as pessoas não duram sempre», diz relativamente aos falantes de português, muitos deles idosos. Mas o que aconteceu em Goa foi que, após 1961, «houve um grande lapso em toda a acção de promoção do português», explica. «Na Índia em geral, e em Goa em particular, foi aquele impasse, desde 1961 até praticamente ao restabelecimento das relações diplomáticas», que definiu o quadro actual. Só pelo tratado bilateral de Dezembro de 1974, que restabeleceu as relações Estado a Estado, Lisboa e Nova Deli acordaram «desenvolver contactos no campo cultural e, em particular, na promoção da língua e cultura portuguesas e na conservação de monumentos históricos e religiosos em Goa, Damão, Diu, Dadrá e Nagar Aveli».

Nesse hiato, «perdeu-se uma geração que, neste momento é a geração que decide, que governa», acrescenta o leitor do IC em Goa. «Temos agora de tentar motivar, tentar explicar, tentar incentivar, cativar os netos dessa geração. Filhos e netos sobretudo», considera Delfim Correia da Silva. «Goa oferece condições únicas – geográficas, culturais, sociais – para a promoção do português».

 

Formar professores

É nessa tarefa que está hoje envolvido o leitor do IC na Universidade de Goa, o único estabelecimento de ensino superior em toda a Índia que possui um departamento de Português, e um dos poucos na Ásia, do qual emana o Centro de Língua Portuguesa (CLP), um caso quase único no universo das 54 unidades deste tipo da rede do IC, pelo facto de funcionar em instalações próprias alugadas, um edifício de dois andares numa rua sossegada do centro de Pangim. A situação reflecte de alguma forma as exigências da presença do CLP na antiga colónia portuguesa.

Além de coordenar as múltiplas actividades do CLP no campo da língua e da cultura portuguesas, nomeadamente organizando palestras, sessões de poesia, de cinema e exposições, e os cursos de Português nas instalações do centro, Delfim Correia da Silva desenvolve como leitor trabalho docente na licenciatura de cinco anos (MA, Masters of Arts) em Cultura e Literatura Portuguesas da Faculdade de Línguas e Literaturas da UG. A graduação é obtida frequentando dois anos específicos, depois de o aluno já ter previamente obtido um bacharelato (três anos) em Português ou noutra língua. Anualmente, saem, em média, cerca de 10 licenciados em Cultura e Literatura Portuguesa. A que se somam mais uma dezena dos cursos livres de Língua Portuguesa.

EncarteNúmeros modestos em consonância com o tamanho do departamento de Português da UG, que o leitor reconhece ser «pequeno». O corpo docente é composto pelo leitor e por mais dois outros professores contratados semestralmente ou anualmente, o que, segundo Correia da Silva, dificulta a programação de actividades a longo prazo, como seja a abertura de programas de doutoramento ou outro tipo de cursos. De saída está, por exemplo, o actual chefe do departamento, o professor R.B.K. Sharma, que também ocupa uma posição de direcção no prestigiado ‘Xavier Center’, criado pelos jesuítas.

Mas o CLP e o departamento de Português da UG têm direccionado crescentemente a sua acção para o campo do apoio didáctico, como aconteceu com o protocolo recentemente assinado para apoio pedagógico ao Chowgule College (ensino médio) de Margão, que tornou o leitor no coordenador e planificador do trabalho do docente que garante as aulas de Português.

Realmente estratégica é a acção de apoio à formação de professores através do Board of Studies, entidade que tutela os níveis básico e secundário do sistema educativo, no qual é ministrado o ensino da língua portuguesa. «Existem professores [de Português], num número bastante considerável. Só que não têm as habilitações necessárias para a docência. E como tal não pertencem aos quadros da escola. São professores que sabem português, a maior parte deles com uma idade já bastante avançada. Em termos de competência são bons. Conhecem muito bem o português falado e escrito. Mas não obtiveram as suas habilitações científicas e académicas», diz o leitor.

Sem habilitações formais, estes professores, num total de cerca de 40, não pertencem aos quadros do sistema educativo, sendo pagos pela Fundação Oriente. Desses quadros fazem parte apenas mais cerca de uma dezena de professores. «Muitos poucos», no dizer de Correia da Silva.

A prioridade para 2010 é pois continuação da formação, de modo a colmatar a falta de professores devidamente habilitados que possam pertencer aos quadros das escolas, dos colleges e mesmo das universidades, diz o leitor do IC. Neste quadro, uma das linha de acção é potenciar o ensino à distância, o que, segundo Delfim Correia da Silva, permitirá responder à múltiplas solicitações que chegam «de toda a costa ocidental da Índia, de Bombaim a Cochim», nomeadamente de Damão e Diu, e a que não tem sido possível responder. «Nós dizemos que não temos professores, que neste momento o que podemos oferecer é apoio técnico, programas, eventualmente, como já aconteceu recentemente, colaborando na organização de alguns cursos intensivos de Português, mas não podemos estar fisicamente…».

Assim, «uma das prioridades, é (…) a criação de um sistema de formação através do b-learning [ensino a distância em linha com uma componente presencial]. O que implica também, necessariamente, a colocação de professores no terreno. O sistema não funciona se não houver a deslocação física pontual, periódica de professores. Neste momento, quem tem feito isso praticamente tenho sido eu».

Seja como for, no entender de Delfim Correia da Silva são precisos «outros incentivos para atrair jovens licenciados para a docência, o que é fulcral para manter o sistema, rejuvenescê-lo e torná-lo auto-suficiente». «A questão fundamental é que é preciso investir e atrair – penso que o termo correcto é mesmo esse ‘atrair’ – professores que potencialmente ofereçam garantias como professores de Português na Índia e não só em Goa», acrescenta.