Exposição: A «máxima modernidade» de Canto da Maia

A obra do escultor Canto da Maia, da qual uma retrospectiva antológica vai ser exibida em Madrid, em Novembro, no âmbito da VII Mostra Portuguesa em Espanha, pode, tal como toda uma geração de escultores modernistas portugueses da 1ª metade do século XX, estar «muito conotada com uma arte encomendada pelo Estado Novo», mas desde que há 19 anos uma grande exposição na Galeria de Pintura do Rei D. Luís, em Lisboa, o actualizou, a sua produção passou a ser olhada «como registo da máxima modernidade artística na área específica da Escultura», diz o crítico e curador de arte Paulo Henriques.

O também director do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) é o comissário da exposição de maior impacto da Mostra Portuguesa de 2009 e, segundo afirma, a ideia da exposição foi proposta pelo adido cultural na Embaixada de Portugal em Espanha, o escritor João de Melo – açoriano como Ernesto Canto da Maia – que, para o efeito, obteve o apoio da directora regional para a Cultura dos Açores, Gabriela Canavilhas, e do director do Museu Carlos Machado, Duarte Melo.

Paulo Henriques admite que a conotação com o Estado Novo que afecta Canto da Maia «pode constituir um estigma contrário à sua inclusão no discurso da crítica e, deste modo, no conhecimento do público em geral», mas isso não lhe retira modernidade e importância. «Canto da Maia é um artista que pode ser definido como um escultor de regresso às ordens figurativas, nomeadamente às esculturas do Mediterrâneo Clássico, aí tendo enquadramento estético a par de Bourdelle, Despiau, Maillol, Joseph Bernard ou Janniot, só para falar do contexto francês, aquele em que mais longamente apresentou publicamente obra sua», refere.

Em certa medida, o percurso de Canto da Maia é semelhante ao da geração dos escultores modernistas em Portugal – Francisco Franco, Diogo de Macedo ou Leopoldo de Almeida, num primeiro momento, Barata Feyo, Álvaro de Brée, António Duarte ou João Fragoso, num momento posterior –, que «ficou sempre conotada com o compromisso ideológico a que obrigavam as encomendas, com claras funções de propaganda nacionalista, do Estado Novo», sublinha o director do MNAA.

A primeira participação de Canto da Maia numa realização oficial do Estado Novo foi no Pavilhão de Portugal na Exposição Colonial de Paris, em 1931, e era composta por peças de grande elaboração formal decorativa, Mestiça olhando-se a um espelho, e os relevos representando a África e Oceânia, indica Paulo Henriques, também comissário da exposição de 1990. A estatuária – acrescenta – surge na Exposição Internacional de Paris, de 1937, com relevos monumentais representando o Infante D. Henriques, Fernão de Magalhães e Afonso de Albuquerque. A sua obra-prima deste género é o grupo monumental constituído por D. Manuel I, Vasco da Gama e Pedro Álvares Cabral, realizado para a Exposição do Mundo Português, em Lisboa, 1940.

Canto da Maia
Bendito seja o fruto do vosso ventre
c. 1922
Terracota pintada, 97x57x30,5 cm
Museu Carlos Machado

Paulo Henriques reconhece que «houve uma mudança de incidências temáticas nos anos de 1940 e 1950, mas a capacidade de evocar os mitos da História nacional era a mesma que utilizou para evocar, nas décadas anteriores, os grandes mitos da humanidade, o amor, a maternidade e a morte». Em seu entender, «Canto da Maia, antes de responder às encomendas oficiais, tinha já traçado um percurso muito personalizado de escultor», pelo que «é redutor dizer que se ajustou ao gosto do Estado Novo, antes inscreveu nas suas estátuas monumentais os mesmos valores que sempre o interessaram, os de um sentido sublime do ser humano. Este facto demarca-o do destino típico dos escultores modernistas em Portugal».

Circuito internacional

Tendo tido sucesso «nos consumos artísticos associados ao gosto Art Deco», Canto da Maia «introduziu neste discurso formalista da escultura da 1ª metade do século XX uma função confessional e intimista, rara no contexto internacional», explica Paulo Henriques, que abordou o tema da Insularidade de Canto da Maia no artigo que inseriu na obra de que foi organizador e que acompanhou a exposição de 1990.

Oriundo de uma família aristocrática, abastada e culta, Ernesto Canto da Maia, diz-nos a sua biografia, estudou, trabalhou e viveu longos anos no estrangeiro, principalmente em França, mas também por um breve período em Espanha. A sua notoriedade, sublinha Paulo Henriques, foi «muito superior internacionalmente», mas esse facto foi-lhe contrário ao seu destino nacional. A par da singularidade da obra, para a sua notoriedade contribuiu ter-se radicado em Boulogne-Billancourt, em 1920, arrabalde próximo de Paris, que era «um dos lugares de maior concentração de escultores de todas as nacionalidades e estéticas do período», afirma o director do MNAA. Acresce, segundo este, a vontade de Canto da Maia de se dar a conhecer «nos circuitos mais qualificados da cultura francesa, principalmente em Paris que, entre as duas guerras, foi um dos centros mundiais da Arte Moderna». Teve «presença constante» nos Salões dos Independentes, dos Artistas Franceses, dos Artistas Decoradores, na importante Exposição Internacional das Artes Decorativas e Industriais Modernas (Paris, 1925). E, em 1935, o Salão dos Independentes em Paris apresentou uma exposição retrospectiva da sua obra.

A breve passagem de Canto da Maia em 1916 pelo atelier madrileno do escultor espanhol Júlio António (1889-1919), com quem estabeleceu uma relação de amizade e desenvolveu linhas de trabalho comuns, no dizer de Paulo Henriques, veio a originar, segundo vários estudiosos, nomeadamente a especialista em História da Arte Carla Mendes, que assina uma nota biográfica sobre o escultor no sítio do Centro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian, «uma mudança na sua obra». Como o escultor espanhol, recusou o naturalismo, adoptando os modelos arcaizantes da tradição clássica do sul da Europa e fez ainda um levantamento dos tipos humanos da sua ilha natal de São Miguel, tal como Júlio António realizara para Espanha, numa longa série de retratos em busto, sintetiza Paulo Henriques.

É esta obra, a um tempo polémica e inovadora, que o público espanhol vai agora poder conhecer.

 

Encarte Camões no JL n.º 144

Suplemento da edição n.º 1019, de 21 de outubro a 3 de novembro de 2009, do JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias