Exposição de António Ole no CCP/IC de Luanda: O criador e as suas circunstâncias

«Acredito que a minha arte possa ajudar as pessoas a mudar, porque é sempre provocadora». A frase de António Ole – que por estes dias tem patente em Luanda a exposição Na pele da cidade – não resume quem ele é, mas exprime de alguma forma a postura deste criador, com uma das obras mais significativas das artes plásticas de Angola, que se estende pelo desenho, pintura, escultura, colagem, assemblage, instalação, fotografia, vídeo e cinema.

Com uma obra complexa, em que à panóplia diversificada de meios se junta o cruzamento de influências diversas, a António Ole (n. 1951) não bastou e não basta, aparentemente, a aventura estética. «Se pões só a beleza na parede, tudo bem, não tenho nada contra… mas a tua ambição é a de encontrar um assunto real e desenvolvê-lo», disse numa entrevista, de que largos extractos foram recolhidos no texto que José António Fernandes Dias, professor da Faculdade de Belas Artes de Lisboa, escreveu para o catálogo da exposição antológica dedicada a Ole, em 2004, na Culturgest em Lisboa.

Lidas as frases assim, descontextualizadas e sem se ver a obra, esperaríamos um artista quase panfletário, o que poderia pressagiar uma obra inicial que suscitou engulhos na Luanda ainda colonial – mas ao mesmo tempo já cosmopolita, como claramente transparece do texto de 2004 do hoje director do Africa.cont, o inovador projecto de centro de artes de África em gestação em Lisboa. Sobre o consumo da pílula (1970) – trabalho do artista angolano ‘enquanto jovem’, em que são reconhecíveis as suas influências iniciais, a Banda Desenhada e a Pop Art –, premiado no IV Salão de Arte Moderna de Luanda, desse mesmo ano, foi proibido de ser exposto, porque as senhoras do Movimento Nacional Feminino pressionaram o governador-geral da colónia contra uma obra que mostrava o Papa a tomar a pílula.

Se outros exemplos houve de choques com os poderes instituídos, com aconteceu com o seu filme O Ritmo do N’Gola Ritmos (1978) – uma longa-metragem documental sobre um grupo musical envolvido na luta clandestina anti-colonial, que ficou «congelado» durante onze anos, porque nele se referia o papel de Liceu Vieira Dias, maestro e, mais tarde, simpatizante da ‘Revolta Activa’ do MPLA –, afigura-se bem mais subtil a forma como António Ole desenvolve a sua actividade criativa. Recusando expressamente ser um artista político, a sua obra é política, no sentido profundo que tem a palavra, isto é, relativo à polis. Mas é também uma forma de exprimir a sua subjectividade no meio dessas circunstâncias, como refere Fernandes Dias. «Não sou um artista político, mas o que acontece à minha volta, na minha vizinhança, no meu país, na minha região é importante e eu capto esses aspectos e incorporo-os», disse Ole a Barbara Murray, editora da Gallery, no número de Junho de 1998 da revista zimbabueana.

"Township Walls" 2004 Dusseldorf - madeira, chapa ondulada e de plástico e ferro, vidro 360x960

Os musseques

Na pele da cidade, a exposição que, desde 11 de Dezembro, está patente no Centro Cultural Português/Instituto Camões (CCP/IC) de Luanda, com curadoria de João Pignatelli, director do Centro, e do próprio Ole, vem encerrar um ciclo, segundo o próprio criador angolano.

Um ciclo que constitui, de certa forma, o paradigma dessa abordagem sofisticada do artista plástico, que já lhe granjeou reconhecimento internacional traduzida em participações em mostras internacionais reputadas de arte de África. Desenvolvendo um conceito que apresentou em ocasiões anteriores e em trabalhos expostos em várias latitudes, António Ole volta uma última vez às “paredes” urbanas.

Os seus painéis «townships walls», apresentados em Chicago (2001), Veneza (2003), Düsseldorf (2004), Lisboa (2004) e Washington (2009) foram o culminar de uma certa abordagem à arquitectura dos musseques de Luanda – esses bairros da lata africanos transbordantes de gente e vitalidade na periferia da cidade do cimento tão caros a António Ole. O catálogo da presente exposição mostra o trabalho ‘preparatório’ através de uma série de imagens fotográficas, progressivamente depuradas e trabalhadas – elas próprias esboço e objecto de valor plástico intrínseco – que vão anunciando os painéis. Ole, que constantemente refere não agir sem pensar maduramente nos seus temas, descreveu em 1995, no catálogo de uma exposição do Delphina Studio, em Londres, citado por Fernandes Dias, esse seu processo de (e)laboração da seguinte forma: «desenvolvo todo um trabalho preliminar – uma espécie de ‘arqueologia’ urbana e cultural que me permite tocar o ‘nervo’ do que me interessa tratar. Depois emprego outra estratégia operativa para conceptualizar o espaço e o tempo, separo todos os elementos e elimino o que não é interessante, evitando os meros esteticismos… É como um jogo cénico sem personagens. Não estão ali fisicamente, deixaram só seu rasto irreparável, criado pelo espectro das ruínas e do absurdo».

Capa do catálogo. Design de João Nunes e Atelier Nunes e Pã

Esta arqueologia da pele da cidade é levada ao extremo nas colagens de fragmentos de casca de paredes sobre papel (re)trabalhadas de várias formas por António Ole ou nas montagens sobre fotografias de ‘motivos urbanos’ (à falta de melhor expressão…) apresentadas agora em Luanda. Poderia não haver nenhuma ‘lição’ a retirar daqui, mas como escreve no catálogo da exposição Delfim Sardo, professor de História de Arte Moderna e Contemporânea na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, «as paredes são peles que guardam nas suas rugas a memória de tudo o que acontece a uma cidade. São superfícies que guardam, como uma impressão, o registo do tempo, de tudo o que aconteceu dentro delas, em seu redor, sobre elas». Ou seja, «as paredes das cidades que têm muitas cicatrizes também têm muitas cicatrizes».

O seu trabalho fotográfico e cinematográfico anterior já deixava intuir esta deriva, como mostra na exposição a exibição de alguns fotogramas do filme O Ritmo do N’gola Ritmos, em que podemos ver uma série de portas e janelas, no relato que dele faz Nadine Siegert, uma antropóloga alemã do Centro de Estudos Africanos da Universidade de Bayreuth, que assina um texto sobre a exposição no catálogo da exposição de Luanda. Nas suas fotografias, António Ole «tenta encontrar uma forma de converter o quotidiano em arte, para nos mostrar os processos vitais que se passam em segundo plano», diz. «Esta visão sobre formações efémeras pode encontrar-se nas fotografias dos musseques dos anos setenta, e à qual voltaria passados trinta anos com as suas instalações», acrescenta Siegert.

As três ‘fontes’

Os musseques luandenses são de facto uma das três ‘fontes’ essenciais do trabalho de António Ole, a par da arte ocidental e da arte africana, conforme a síntese biográfica que dele faz Fernandes Dias para o sítio ‘Artcapital’: «a arte ocidental que conhece através de museus, exposições, livros, revistas, e da frequência de ateliês de outros artistas. As formas expressivas vernáculas contemporâneas da sua Angola natal, particularmente a arquitectura popular dos musseques, ligada a esquemas de sobrevivência, onde reconhece uma criatividade e uma energia que sempre o fascinaram. E as artes clássicas de África que utiliza de uma forma particularmente sofisticada e complexa – apropriando e traduzindo motivos iconográficos, ou materiais e técnicas, mas também, mais profundamente, princípios conceptuais que lhe permitem trazer para a arte contemporânea alguns dos traços que estão presentes nos objectos rituais das tradições africanas. Mas nunca para repetir essas formas tradicionais…»

"Sem Título" 1998 fotografia montada em alumínio 90x120 cm

Se o interesse pelos musseques corresponde ao interesse que Ole sempre teve pela arquitectura e que o levou jovem a tentar ingressar no curso respectivo em Lisboa (que não existia na colónia) – o que só não aconteceu porque a situação era ‘confusa’ no curso da Escola Superior de Belas Artes de Lisboa e foi entretanto incorporado no serviço militar em 1971 –, corresponde também à descoberta do seu país por um jovem nascido na classe média mestiça e crioula luandense, que há muito sabia que a independência estava em marcha e que a esperava ansiosamente.

Quando, após o 25 de Abril de 1974, entra para a nova televisão angolana – será ele o realizador responsável pela emissão ininterrupta de 12 horas que cobriu o dia da independência de Angola declarada pelo MPLA, numa Luanda que tem às suas portas as forças da FNLA, da UNITA e da África do Sul –, viaja pelo «país profundo». E é assim que, embora entre 74 e 82 pare de pintar e realize com o apoio de Luandino Vieira, então à frente da televisão, os seus primeiros documentários, aprofunda o seu conhecimento das ‘artes clássicas de África’, a que tivera um primeira abordagem no contacto estabelecido, ainda jovem, com o etnólogo e sociólogo José Redinha, fundador do Museu do Dundo, nas Lundas, que lhe deu a conhecer as colecções etnográficas existentes, mas não expostas, no Museu de Angola.

O cinema, mas também «uma certa frustração» com o desenrolar do processo angolano, leva-o no princípio dos anos 80 aos Estados Unidos, na Universidade da Califórnia – Los Angeles (UCLA) para um curso de realização que, paradoxalmente, o põe de novo em contacto com as artes plásticas. Viaja por todo o país e «visita febrilmente os grandes museus de arte por todo o lado», conhecendo os inspiradores dos seus primeiros trabalhos enquanto jovem artista plástico em Luanda, na descrição de Fernandes Dias. «Foi um dos períodos mais ricos da minha vida», declarou Ole, que volta então a pintar. No regresso a Luanda, e confrontado com o naufrágio do cinema angolano, toma «a mais sábia» decisão que diz ter tomado até hoje: «ser um freelancer, ser gestor do meu próprio destino e do meu trabalho», dedicando-se «a tempo inteiro às artes, à fotografia, à pintura, à escultura».

Duas culturas

É difícil de dizer, obra a obra, onde começam e acabam as várias ‘influências’ que os especialistas detectam nos trabalhos de António Ole, até porque, segundo José António Fernandes Dias, o próprio criador angolano tem do seu trabalho a visão de «um percurso não linear, muito aberto e fluido, marcado por ‘coisas que se fazem muitas vezes umas contra as outras’». É certo que «recorre às linguagens artísticas do século XX» e a abundantes «elementos iconográficos, figurativos ou geométricos, das expressões plásticas tradicionais de África». Mas onde é que isso o deixa?

No seu texto Fernandes Dias coloca abertamente a questão do reconhecimento da identidade angolana de António Ole. À pouca receptividade que as suas propostas mais radicais encontram, mas a que o artista não está disposto a ceder, soma-se «um certo debate intelectual que se vem fazendo desde os anos que se seguem ao fim do conflito interno e à instauração do pluripartidarismo», que no domínio das artes «procura definir o que chamam o ‘cânone angolano’», assente numa «autenticidade identitária essencial de raiz bantu».

A resposta de Ole não podia ser mais sensata: «o meu trabalho (no fundo, eu próprio) resulta do encontro de duas culturas — a cultura africana e a cultura europeia. Isso é uma evidência de que não posso, de maneira alguma, abstrair-me, e que não posso negar. Não, eu sou produto desse encontro de culturas. Isso é enriquecedor, nunca achei que reduzisse qualquer capacidade. Nem constitui nenhum dilema existencial, porque, no fundo, além desse facto de ser angolano e de viver em Angola, eu sinto-me um cidadão do mundo e, ao sentir-me cidadão do mundo, estou sempre permeável a muitas coisas que estão a passar-se noutros pontos do globo e não só, necessariamente, ao que me atinge ou me toca no meu aquário, no meu bairro. Nunca gostei de ver as coisas de um ponto de vista regional. Felizmente, pensei sempre as coisas de uma maneira mais ampla, mais diversa e, nesse sentido o facto de ser mestiço enriquece-me e, definitivamente, não me limita.»

 

 

Encarte Camões no JL n.º 146

Suplemento da edição n.º 1023, de 16 a 29 de dezembro de 2009, do JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias