O pai, o filho e o «verdadeiro Guedes»

Exposição na Cidade do Cabo 

A diversidade da sua obra, que vai da arquitectura à pintura e à escultura, mas sobretudo a multiplicidade e o eclectismo dos seus estilos e a criatividade inovadora das suas formas fazem de ‘Pancho’ Miranda Guedes um «caso à parte» na arquitectura portuguesa da segunda metade do século XX.

Número 127   ·   2 de Julho de 2008   ·   Suplemento do JL n.º 985, ano XXVIII

O Leão que Ri  
Prédio O Leão que ri, 1955, Lourenço Marques/Maputo
 
   

É como se não houvesse apenas um, mas vários Guedes. Um pouco à maneira de Fernando Pessoa e dos seus heterónimos, com quem aliás ‘Pancho’ Guedes comunga o facto de também ter estudado na África do Sul, no seu caso Arquitectura, onde se graduou na prestigiada Universidade de Witwatersrand.

O próprio Guedes fala por vezes de si na terceira pessoa e chegou mesmo a apresentar-se como uma trindade: Pancho Guedes, o pai «o inventor de todas as obras de arte», que «não consegue distinguir entre a pintura, escultura e arquitectura», Amâncio Guedes, o espírito, «revelado pela primeira vez internacionalmente nas páginas da Architectural Review» nos anos 60, e A.d’Alpoim Guedes, o filho, «o executor, o ‘responsável’ por toda a obra excepto betão armado’ – de facto o verdadeiro Guedes».

É uma exposição sobre a «extraordinária» obra «modernista alternativa», para alguns, «pós-modernista» antes do seu tempo, para outros, deste arquitecto português, hoje com 83 anos, que está patente até 31 de Agosto na National Gallery do museu Iziko da Cidade do Cabo, na África do Sul, país onde veio também a trabalhar, a partir de meados dos anos 70, após 25 anos de intensa actividade em Moçambique, então colónia portuguesa.

A mostra Pancho Guedes – An Alternative Modernist é a mesma que, de Setembro de 2007 a Janeiro de 2008, foi apresentada em Basileia no Museu de Arquitectura Suíço (SAM) e que teve como curador um outro arquitecto português, Pedro Gadanho, professor na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto (FAUP).

Tratou-se da segunda grande exposição internacional dedicada ao trabalho do arquitecto português. A primeira ocorreu em Londres, em 1980, na Architectural Association.

  Pintura
   

A sua obra plástica foi sendo objecto de diversas exposições ao longo dos anos, a última das quais, Viva Pancho, com 93 obras de pintura, escultura e desenho, teve lugar em 2005 na Galeria Perve, em Lisboa.

A exposição agora na Cidade do Cabo está centrada no trabalho que Miranda Guedes desenvolveu entre 1950 e 1975 em Moçambique, espelhada em cerca de 500 projectos, sobretudo erguidos na então Lourenço Marques, hoje Maputo, o suficiente, segundo ele próprio, para perfazer uma cidade de tamanho médio, com as suas escolas, fábricas, igrejas e hospitais.

A mostra, que tem o apoio do Instituto Camões, inclui também uma componente, de que foi curador Henning Rasmuss, sobre o seu menos conhecido trabalho na África do Sul, onde ‘Pancho’ Guedes foi, a partir de 1975 e durante 15 anos, professor e director do Departamento de Arquitectura da prestigiada Universidade de Witwatersrand (Wits).

Em 2007, com o projecto Lisboscópio (concebido em co-autoria com Ricardo Jacinto) Pancho Guedes representou Portugal na Bienal de Arquitectura de Veneza. E recentemente publicou Manifestos, Ensaios, Falas, Publicações (uma edição da Ordem dos Arquitectos e da Caleidoscópio) e também Metamorfoses Espaciais, uma monografia organizada por Miguel Santiago.

 

O excepcionalismo de Miranda Guedes

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Amâncio d\'Alpoim Miranda Guedes, de seu nome completo, reivindicou para os arquitectos as mesmas liberdades e direitos dos pintores e poetas. Um princípio a que deu aplicação na sua diversificada obra.

«Este lendário arquitecto moçambicano – que construiu uma reputação excepcional nos círculos mais reservados do meio arquitectónico do começo dos anos sessenta – oferece hoje a perspectiva histórica de uma modernidade alternativa na qual o rationale do Estilo Internacional é pela primeira vez confrontado com uma visão verdadeiramente multicultural», lê-se no catálogo da exposição de Basileia.

Para o arquitecto sul-africano Cedric Green, que mantém na internet um sítio dedicado a ‘Pancho Guedes’ (http://www.guedes.info/), este foi «um pós-moderno 20 anos antes de o termo ter sido inventado».

Embora longe dos centros culturais europeus e norte-americanos da época, Miranda Guedes conhecia bem as tendências da arquitectura. Viajou pela Europa e são várias as referências à quantidade de informação que constantemente recebia. Manteve ainda contactos próximos com nomes como Bruce Geoff e o seu nome consta entre os membros do Team 10, um grupo de arquitectos reunidos após a dissolução do CIAM de Le Corbusier com o objectivo de rever os seus conceitos.

As condições que permitiram o excepcionalismo de Miranda Guedes foram, em primeiro lugar, obviamente, a sua própria personalidade, capaz de beber de várias fontes (de Horta a Gaudí ou de Wright a Le Corbusier, na arquitectura, do Expressionismo, do Surrealismo ou do Dadaísmo, no universo artístico, segundo diz Pedro Gadanho no catálogo da exposição de Basileia) e de gerar uma nova síntese original, mas também o facto de, como vários autores apontam, ter trabalhado numa sociedade colonial africana, relativamente dinâmica e cosmopolita, que permitiu, paradoxalmente, a ele e a outros, desenvolver uma arquitectura modernista só timidamente pensável então na metrópole.

É este contexto africano, no quadro da sua «dissidência» do modernismo canónico, que vai «vestir» a arquitectura de Miranda Guedes. «Pancho Guedes é dos primeiros a abrir-se à cultura africana e a deixar que ela coloque em questão as certezas da cultura eurocêntrica», escreve Pedro Gadanho. «No seu Stiloguedes, Guedes vai cruzar o racionalismo e o rigor estrutural da cultura ocidental com a dimensão mágica e orgânica da simbologia africana», acrescenta o professor da FAUP.

Esta simbologia africana, que lhe permite criar uma identidade local, é acolhida na arquitectura de Guedes por via do eclectismo estilístico e da ornamentação, de que são exemplo em Lourenço Marques o Restaurante Zambi (1958) e o Leão que Ri (1956), um prédio de apartamentos, ou a Casa Swazi Zimbabwe (1968), em Goedgegun, na Suazilândia.

«Tivesse ele sido arquitecto no Ocidente em vez de África e os media tê-lo-iam projectado mais do que fizeram até agora», escreveu o professor PG Raman, director da Escola de Arquitectura e Planeamento de Wits, por ocasião da atribuição em 2003 por aquela instituição sul-africana do doutoramento honoris causa a ‘Pancho’ Guedes, em que evoca também a «irreverência» do arquitecto português.