Retalhos da vida de uma tradutora

Mioara Caragea

Número 142 · 26 de Agosto de 2009 ·  Suplemento do JL n.º 1015, ano XXIX

Mioara Caragea veio a Portugal em 1975 com uma bolsa de Verão do ICALP. Vinha da Roménia de Nicolae Ceausescu, onde a política estava ‘morta’ para o cidadão comum. Como nos conta, ficou fascinada com ambiente que então se vivia no país do PREC.

Mioara Caragea
Mioara Caragea

Mas a sua opção pela língua e pela cultura portuguesas, de que se tornou uma das principais especialistas na Roménia, com uma vasta obra publicada e leccionando actualmente história da literatura e vários cursos/disciplinas sobre ‘civilização portuguesa’ na Universidade de Bucareste, terá sido feita em vários momentos, quando pôde aceder a obras proibidas porque estavam em português, quando ouviu música portuguesa e brasileira e, sobretudo, quando sobreviveu ao isolamento de uma colocação num «subúrbio distante e miserável» pela relação mantida com o português graças às traduções.

O trabalho daquela que já traduziu boa parte da obra de José Saramago – está agora a trabalhar na tradução do mais recente romance do Nobel da Literatura português, A Viagem do Elefante, que deverá sair em breve – é, no dizer de Patrícia Ferreira, leitora de língua e cultura portuguesa na Universidade de Bucareste, que com ela privou nos últimos três anos, «muito bom e seguramente o melhor no âmbito do Português-Romeno». Uma opinião que se estriba não só na sua opinião, como nas críticas e no que ouve das pessoas que procuram as traduções de Mioara Caragea, cujo trabalho «valoriza a divulgação que faz» da literatura de língua portuguesa.

Um labor que tem aliás sido reconhecido ao longo dos anos, tanto em Portugal como na Roménia. Em 1996, recebeu o Prémio Internacional de Tradução da Sociedade de Língua Portuguesa. Em 1998, o Salão Nacional do Livro de Cluj, deu-lhe o prémio de tradução e mais recentemente, em 2002, foi-lhe atribuído o Prémio nacional de tradução da Associação dos Editores Romenos.

Isto, apesar de, como diz Mioara Caragea, a actividade de tradução ser para ela uma espécie de passatempo. «Traduzo apenas os livros de que gosto, de autores que amo».

No texto que abaixo publicamos, Mioara Caragea evoca vários momentos de uma vida ligada à língua e à cultura portuguesas.

A primeira vez que ouvi falar, de facto, cantar em português, foi quando era ainda criança e Amália deu um concerto em Bucareste. Gostei da música, da Amália e da sonoridade da língua.

Portugal era naquele tempo um país perfeitamente exótico, não tinha relações diplomáticas com a Roménia, parecia um mundo inatingível. Na mesma época, quando tinha mais ou menos onze anos, li um livro que me marcou e que me inspirou a começar a escrever um romance (falhado). Era um livro escrito por um explorador inglês excêntrico, P. H. Fawcett que, nas primeiras décadas do século, viajara pela Amazónia à procura duma cidade misteriosa, que ele chamara discretamente Z, o mítico El Dorado. Havia ali um número enorme de espécies animais e botânicas com nomes que não sabia pronunciar, piranha por exemplo, que depois me visitou em muitos pesadelos. Depois, ao crescer, tudo isso foi ficando como um perfume mítico das vivências infantis.

Na universidade, no primeiro ano, em 1974, estudava francês e espanhol e, de repente, apareceu um português meteórico, Carlos Lelis, que andava a criar nos países do Leste leitorados de português.

Eu já sabia francês e inglês, podia ler o espanhol, andava a aprender italiano e, claro que aproveitei a ocasião de aprender também o português. Gostava de aprender línguas não tanto para falar - não havia com quem falar uma língua estrangeira, não se podia viajar e os contactos com os estrangeiros eram permitidos apenas em contextos institucionais -, mas para ler. Um livro proibido e ”intraduzível” podia ser encontrado numa língua diferente. Por exemplo, li 1984 de Orwell em português, Soljentitsin em francês, estes eram livros proibidos.

O nosso leitor de português era um jovem açoriano, José Gonçalves Bettencourt. Ele ofereceu-nos mais do que um simples acesso à língua. Conseguiu criar um clima particular, muito diferente daquela distância académica que costuma existir na universidade. Nos intervalos ouvíamos música portuguesa e brasileira, convidava-nos para tomar refeições portuguesas na sua casa, era um verdadeiro chef!

A música que ouvi nos anos da faculdade é a mesma que ouço agora. Nos últimos anos, recuperei nas lojas portuguesas toda a música que ouvia na altura: José Afonso, Adriano Correia de Oliveira, Lucília do Carmo, Chico Buarque, Maria Bethânia, Gal Costa. Outra professora que tivemos, durante um ano, foi uma das primeiras lusófilas romenas a sério, Roxana Eminescu, que está agora em França. Ela era uma extraordinária tradutora, traduziu fragmentos de Gil Vicente, uma tarefa que ainda hoje me parece impossível, Aquilino Ribeiro, e sobretudo Fernando Pessoa.

Em 75 tive a sorte de receber uma bolsa de verão do ICALP com outros três colegas e, graças ao José Bettencourt, estive alojada na casa de uma família portuguesa que tinha um filho mais novo que eu. Ele tinha um amigo, Carlos Nobre, e eu assistia às conversas apaixonadas dos rapazes sobre a política, andava com eles nas manifestações. Era 75 e tudo estava num rebulício em Lisboa. Era fascinante para mim que vinha dum país politicamente morto. Na Roménia não havia debates, não havia nada, senão linhas directrizes do partido comunista e o medo de ser espiado a todo o momento. Até me meti num comício político, mas sempre tinha a minha mão sobre o rosto de medo que alguém da embaixada me visse e reclamasse.

José e todos os seus amigos, entre os quais Helena Buescu e o seu futuro marido, dedicaram-se completamente a nós. Fizeram-nos um programa: fomos a uma casa de fados, a uma tourada, até nos levaram a um filme porno só para se divertir com as nossas reacções. Adorei Lisboa, Sintra e o oceano, e desde aquela altura sinto-me sempre em casa quando lá volto.

Depois da licenciatura, os estudantes eram obrigados a ir para onde eram mandados, não havia nenhuma possibilidade de escolha, e eu acabei como professora de francês num subúrbio distante e miserável. Era muito deprimente, tínhamos caído do Éden da faculdade numa degradante vida real. Muitos acabavam por esquecer as suas ambições e até os estudos feitos. Contudo, eu consegui manter a relação com o português graças às traduções.

O primeiro livro que traduzi foi Chiquinho de Baltasar Lopes, um livro difícil para uma primeira tradução, cheio de fragmentos de mornas em crioulo. Tive de encontrar um cabo-verdiano para explicações e consegui. Depois houve outros livros: Agustina Bessa-Luís que conheci em Bucareste, Eça de Queirós.

Agustina, com o seu marido, e João Medina com a sua mulher, tinham vindo a Bucareste assinar um acordo de colaboração com a União dos escritores romenos a fim de fomentar as traduções recíprocas. O que eles propunham, e era lógico, era organizar traduções feitas em colaboração entre um nativo e um falante da outra língua. Mas isso significava contactos entre portugueses e romenos, o vírus do capitalismo podia contaminar-nos, e o acordo não foi assinado. Nos dias em que estávamos à espera da decisão da União dos Escritores, fomos todos a Bran, onde fica o castelo medieval da Transilvânia, falsamente atribuído a Drácula. Um eco daquela viagem surge na primeira página dos Meninos de Ouro, onde Agustina fala dos Cárpatos.

Em 84, mais ou menos, recebi O memorial do Convento do Instituto do Livro e, ao ler a primeira página, foi logo amor à primeira vista.

O Memorial saiu em 88, mas com um nome modificado (O Memorial de Mafra) porque a censura não gostava da palavra convento. Entretanto recuperou o seu nome. Depois seguiram-se História do Cerco de Lisboa, Ano da Morte de Ricardo Reis, O Evangelho segundo Jesus Cristo, Ensaio sobre a Cegueira, Todos os Nomes, A Caverna. Agora estou a traduzir A Viagem do Elefante, em que reencontrei muito do Saramago dos anos 80.

Escrevi também a minha tese de doutoramento sobre Saramago para a qual beneficiei da ajuda do autor e da editora Caminho que me proporcionaram livros de crítica e um número enorme de fotocópias de artigos e entrevistas.

Traduzi também outros autores portugueses e brasileiros para revistas literárias. Mas a minha principal actividade é universitária e trabalho nas traduções no meu tempo livre. A tradução é, em grande medida, uma espécie de hobby, não a faço pelo dinheiro porque eu invisto demasiado tempo numa tradução para que realmente ela seja lucrativa. Traduzo apenas os livros de que gosto, de autores que amo e tenho um grande sentido de responsabilidade não apenas em relação às obras, mas também em relação ao público leitor. Eu aprendi o romeno literário nas grandes obras literárias traduzidas, e acho ser um crime dar ao público um livro mal traduzido.

Na universidade ensino a história da literatura e vários cursos/disciplinas que aqui se chamam civilização portuguesa, francesa etc. Civilização significa um pouco de tudo: geografia, tradições, história, música, urbanismo, arte, arquitectura, identidade. Gosto muito desses cursos porque representam um desafio e me obrigam a ler e, curiosamente, os estudantes respondem à chamada civilização melhor do que à literatura. Isso é natural porque é mais difícil relacionar-se com a literatura medieval ou renascentista do que com o mundo concreto que eles têm hipóteses de encontrar. Muitos escolhem temas de licenciatura dessa área.

Houve teses, por exemplo, sobre o urbanismo em Portugal, a história do vinho do Porto, as moiras encantadas, os Descobrimentos e a sua herança linguística etc. Graças às bolsas que me foram concedidas ao longo dos anos pelo Instituto Camões, consegui constituir uma biblioteca de uns três ou quatro mil volumes, mas nunca é demais. 

O meu próximo projecto, depois de A Viagem do Elefante, é traduzir um livro de Lídia Jorge. Gostava também de traduzir Mário de Carvalho e Clarice Lispector.»