Sem extintores, não há exposição!

Número 139   ·   3 de Junho de 2009   ·   Suplemento do JL n.º 1009, ano XXIX 

Ciclo entre Partidas e Chegadas

A pequena história das exposições está cheia de episódios que dão conta de dificuldades, na aparência menores, que se não forem resolvidas a contento, se podem transformar em obstáculos intransponíveis.

 

S. Tomé
Foto Luciamarquesprojects.blogspot.com
Foi o que aconteceu, por exemplo, com a falta de extintores em São Tomé e Príncipe, como conta Joaquim Caparica, da Divisão de Acção Cultural Externa (DACE) do Instituto Camões (IC), que juntamente com os outros técnicos, Cristina Caetano e Eunice Santos (chefe do serviço), participou na preparação operacional da itinerância por cinco países, entre Julho de 2008 e Abril de 2009, de um ciclo como entre Partidas e Chegadas, em que a uma exposição de arte contemporânea se somou uma mostra de cinema.

 

A lógica é imbatível: os emprestadores das peças exigem seguro – ‘prego a prego’, isto é, seguro total; para se fazer o seguro é necessário dar conta das condições de exposição; e se não há extintores, não há seguro. Que solução? Compram-se fora e levam-se para o país. O problema é que não podem ir carregados. Os regulamentos aéreos não o permitem e a TAP exige documentação que as empresas que vendem extintores em Portugal não têm. Acresce que não há empresas em São Tomé e Príncipe para depois encher os extintores. O transporte marítimo não é solução. Não há tempo. Logo não há extintores, logo não há empréstimos, logo não há exposição! «Tivemos a sorte de o grupo Pestana estar lá instalado e ter disponibilizado os extintores», diz Joaquim Caparica explicando como o problema foi ultrapassado.

 

Outros problemas surgiram, como relata a co-curadora Lúcia Marques: «desde problemas alfandegários em Brasília (devido às obras que tinham caixas de transporte feitas em madeira e que devido à legislação do país tiveram de ser examinadas), a artistas a adoecer por um ou dois dias, tendo nós de fazer a montagem da exposição e terminar o workshop [oficina de trabalho] em paralelo no prazo de uma semana na maior parte dos casos!»

 

A seu favor, a itinerância de entre Partidas e Chegadas teve o ter sido primeiro apresentada em 2007 em Bruxelas. «Isso facilitou um bocadinho o trabalho», diz Cristina Caetano. A parte da «pré-produção» já estava feita, nomeadamente a definição do «discurso expositivo». Mesmo assim foi preciso preparar as peças para suportarem um desgaste mais prolongado imposto pela itinerância, refere Joaquim Caparica.

 

No essencial, acrescenta Eunice Santos, «foi só uma questão de prorrogar os pedidos de empréstimo de peças e os direitos de exibição dos filmes». Mas houve dificuldades com duas películas deste ciclo. «Às vezes os pedidos de direitos de exibição são muito elevados», diz Cristina Caetano. «Entende-se que se não deve corresponder, porque pelo lado do IC está a contrapartida da divulgação, da exibição sem fins comerciais», explica. É então preciso negociar e procurar alternativas.

 

Houve ainda que preparar as deslocações dos artistas que, em cada escala, ministraram uma oficina de trabalho. «É preciso tratar do alojamento, é preciso tratar das viagens, é preciso tratar dos honorários. E, depois, é preciso também verificar, de acordo com o programa do workshop, que equipamento é que é exigido, que equipamento é que é adquirido», enuncia Cristina Caetano. Máquinas fotográficas descartáveis para São Tomé, impressora fotográfica para Luanda.

 

Existiu igualmente a preocupação de integrar o ciclo em eventos locais para dar mais visibilidade e atrair mais públicos, o que foi conseguido em São Tomé, com a incorporação na bienal de arte, e em Maputo, com a passagem dos filmes do ciclo na programação do festival Dockanema.

 

Mas aquilo que é verdadeiramente trabalhoso numa itinerância é a própria itinerância. De cada vez que a exposição e os filmes foram exibidos regressaram «à base», isto é, a Lisboa, antes de seguirem para próxima etapa. Por um lado, «é preciso sempre ver o estado de conservação das peças. Se estão todas em condições. Houve uma etapa em que foi preciso fazer uma intervenção nas obras da Tatiana Macedo», diz Cristina Caetano. Por outro, tem a ver com as regras do próprio correio diplomático, através do qual circulam as peças e outros materiais, que não permitem a circulação entre postos.

 

Os técnicos são unânimes de que uma das vantagens desta itinerância foi o facto de os centros culturais do IC nos cinco países terem sido o local de acolhimento da exposição. Eram «espaços que podíamos controlar» e, nalguns países, são os espaços «que têm melhores condições», refere Joaquim Caparica, citando a segurança. Embora, por vezes, se coloquem questões quanto às condições de humidade, temperatura e luz, conforme admite Eunice Santos.

 

A escolha dos centros permitiu também agilizar procedimentos. Se a montagem contou sempre com a presença da co-curadora do ciclo, já a desmontagem ficou entregue aos centros culturais do IC. A presença da curadora nos locais da apresentação do ciclo, dizem os técnicos, foi fundamental. Porque só in loco se resolvem alguns problemas.

 

No ‘currículo’ da DACE não foi esta a primeira vez que se organizou uma itinerância. Nos últimos anos tiveram lugar Réplica e Rebeldia e Troca de Olhares (2007/2008) e mais para trás Caligrafias Açorianas (2001) e A Arte do Azulejo em Portugal (2001).

 Uma experiência que é reconhecida por Lúcia Marques, quando diz: «imagine o que é pôr um projecto destes, com obras de arte contemporânea que envolvem coleccionadores privados, tanto portugueses como internacionais, com documentários cujos direitos de autor cabem a produtoras também nacionais e internacionais, envolvendo a ida dos próprios artistas para a realização de workshops e em contextos com tantas particularidades como São Tomé, Maputo, Brasília, Luanda, Praia e Mindelo!» Não organiza uma exposição quem quer. Organiza quem pode, claro, mas sobretudo quem sabe. «Falaram em organizar uma exposição» 

(…) O workshop de que mais gostei e que penso que é um bom modelo a seguir, é o que o Bernard Plossu realiza todos os anos no Cabo de Gata, na Andaluzia em Espanha. E esse modelo de workshop foi o que eu adaptei para fazer em S. Tomé e que penso que correu muito bem. A única diferença é que as máquinas utilizadas não são as dos fotógrafos, mas sim máquinas descartáveis.

 

CCP em S. Tomé
Foto Lúcia Marques Projects.Blogspots.com
No 1º dia estivemos a conversar no Centro Cultural Português (CCP), onde nos pudemos conhecer melhor e onde pude ver qual era a relação que cada um tinha com a fotografia. Projectei vários slides [diapositivos] de fotógrafos e falava dos seus projectos, isto para nos inspirarmos em trabalhos já realizados para definirmos um tema em conjunto, que iríamos abordar nos dois dias seguintes. E o tema foi a viagem. No 2º dia, saímos todos do nosso ponto de encontro que era o CCP, e caminhámos até à zona do Mercado de S. Tomé. Cada um seguiu o seu instinto e eu que também estava a fotografar com a mesma máquina descartável, ia falando com cada um à medida que nos íamos encontrando. As máquinas descartáveis têm 27 imagens, e o workshop era de 3 dias. Ou seja, isso obrigava-os a ter que pensar duas vezes antes de fotografar.

 

É importante dizer que o número de participantes ia crescendo. No 1ºdia tinha 12 pessoas, no 2º, 15 e no 3º, 17. Infelizmente, não tínhamos mais máquinas para os dois últimos, que mesmo assim nos acompanharam. Esse dia foi fantástico, pois fomos todos numa carrinha de caixa aberta até à roça da Bela Vista. Neste espaço também cada um seguiu o seu caminho, mas, como era mais pequeno e menos confuso que o mercado, deu para conversar melhor. Depois de duas horas na roça, fomos até à festa de S. Mateus, que era uma festa popular, cheia de música e gente na rua. Neste espaço, já poucos fotografaram, pois já era quase de noite.

 

Depois de termos passado 3 dias juntos, tanto a falar, como a fotografar e a viver situações idênticas, fiz-lhes ver que a atitude que se tem perante a vida e as coisas que se fazem, e a forma como nos relacionamos com a fotografia é muito importante. E não foi tanto um workshop técnico, mas mais prático e a trabalhar num terreno que é muito rico e interessante. Todos sentimos que em S. Tomé ainda há muito para fotografar e muitos projectos interessantes que podem ser feitos. Os participantes do workshop perceberam isso, e acho que por causa disso este workshop correu muito bem.

 No 4º dia, de manhã, fui pôr os filmes a revelar e encontrámo-nos no Café&Companhia às 13h para um almoço oferecido pelo CCP. Às 14h, entregaram-nos os filmes todos revelados e com as 27 fotografias no formato 10X15cm. Cada um começou a ver o que tinha feito. Como o CCP tem imensas mesas cada um mostrou as suas fotografias. Fiz uma selecção das melhores imagens de cada um e com o consentimento do aluno, apresentámos as fotografias do workshop numa grande parede do CCP. Na inauguração todos fizeram questão de estar presentes e recebemos elogios muito positivos e construtivos. Os próprios participantes do workshop falaram em organizar uma exposição com trabalhos novos no futuro.  André CepedaDirigiu a oficina de trabalho em São Tomé e Príncipe  ‘Deslocações’ em Luanda (…) Gostei muito do grupo pois era constituído de pessoas de várias idades e backgrounds: desde artistas ligados maioritariamente à pintura, a poetas, jornalistas, “banda-desenhistas”, jovens fotógrafos e um fotógrafo profissional. Todos eles mostraram um grande empenho e responderam ao desafio dando o seu melhor, na tentativa de criarem retratos marcantes e distintos. O ponto forte do resultado deste workshop foi, a meu ver, a diversidade de respostas por parte dos participantes e a sua enorme criatividade. Senti neles uma vontade de se destacarem uns dos outros tentando evidenciar um estilo próprio e isso acho extremamente positivo.

As restrições eram muitas a nível técnico e logístico. Todos os retratos tiveram de ser feitos dentro do Centro Cultural (por questões de segurança e de acompanhamento do trabalho da minha parte), o equipamento fotográfico limitou-se a uma máquina fotográfica digital trazida por cada um dos participantes e a pessoa que tiveram de retratar foi tirada aleatoriamente, ou seja, não tiveram oportunidade de escolher um modelo. Isto foi muito importante porque obrigou-os a interagir e conhecerem-se melhor uns aos outros criando uma rede de contacto que espero continue a existir após o workshop [oficina de trabalho].

Luanda é uma cidade grande e acima de tudo difícil no sentido das “deslocações”, o trânsito é muito complicado e muitas pessoas têm sérios problemas para se deslocaram entre as várias zonas e bairros da cidade. Mas por mais dificuldades que surgissem, impressionou-me o esforço que cada um fez para comparecer ao workshop e partilhar aqueles momentos de exploração e aprendizagem colectiva. Também por estes motivos o workshop foi dado em horário pós-laboral.

 Em suma, achei que o formato, tema e constituição do workshop resultaram muitíssimo bem porque obrigou pessoas com experiências distintas e vivências distintas da cidade (numa cidade tão dividida como Luanda), a partilharem um espaço e um objectivo: o de captarem “o outro” numa imagem. O facto de as suas fotografias terem integrado a exposição também foi um ponto forte que os motivou ainda mais. Tatiana MacedoDirigiu a oficina de trabalho ‘O Retrato na Fotografia Contemporânea’ realizada em Luanda