Sobreviver ao fim da ‘solidariedade internacionalista’

A Língua Portuguesa na Rússia

O fim do comunismo parece não ter afectado significativamente o interesse dos russos pela língua e pelas culturas portuguesa e lusófona. Pelo contrário. Logo depois do 25 de Abril de 1974, como reconhece o leitor do Instituto Camões (IC) em Moscovo, João Mendonça João, «por razões ideológicas, deu-se [na Rússia] uma aproximação ao mundo lusófono». Era a época da ‘solidariedade internacionalista\' com os povos ex-coloniais, que obrigava a ter quadros e estudiosos que aprendessem e dominassem o português, para enviar para Angola, Moçambique, Guiné-Bissau e Cabo Verde, e conhecessem estes países.

Número 136   ·   11 de Março de 2009   ·   Suplemento do JL n.º 1003, ano XXVIII

Universidade Estatal de Moscovo
Universidade Estatal de Moscovo. Foto Argenberg
Dezassete anos passados sobre a extinção da União Soviética, a língua e a cultura portuguesa «interessam a públicos muito diversificados», garante João Mendonça João, que em Moscovo lecciona desde 2004 em três instituições de ensino superior - a  Lomonossov (MGU), a Universidade Estatal de Relações Internacionais (MGIMO) e a Academia Diplomática, a primeira a mais antiga da Rússia e as duas últimas na dependência do Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) russo.

«Hoje em dia, os interesses são de outra ordem, começando pelo turismo», refere. «Portugal, antes de mais, exerce um certo fascínio, por ser o outro extremo geográfico da Europa. Há um certo exotismo associado a Portugal», que se tornou para os russos endinheirados um destino sui generis, que foge ao turismo de massas de países como a Turquia, o Egipto ou a Espanha, explica o leitor do IC. Só não há mais russos a visitar Portugal porque há poucas linhas aéreas, considera o leitor.

Os russos, as suas elites, conhecem muitos dos portugueses «modernos» - Cristiano Ronaldo, claro, Mariza, Madredeus, Paula Rego, Siza Vieira, Saramago, Lobo Antunes, José Luís Peixoto, os Moonspell, Daní, José Mourinho. «A nossa elite cultural acaba por ser conhecida do público russo, porque de alguma forma os vultos da nossa cultura contemporânea são cada vez mais cosmopolitas, e as suas obras já se situam numa geografia globalizada da arte», adianta o leitor.

«Há por parte dos que optam por Portugal, uma busca de autenticidade na descoberta do nosso património arquitectónico, histórico, culinário...» Para mais, acrescenta, «Portugal tem uma imagem muito positiva junto dos russos, despida de todos os clichés depreciativos difundidos pela Europa fora».

Razões

No entanto, o anterior modelo de «saídas profissionais» na área da língua portuguesa (LP) assente nas ligações políticas e económicas mantém ainda algumas virtualidades. «A Rússia tem grandes empreendimentos em Angola» e envia para lá técnicos e tradutores para lhes dar apoio. «Todo este fluxo de actividade económica requer meios humanos lusófonos», diz o leitor do IC em Moscovo.

O próprio MNE russo «enfrenta dificuldades na contratação de pessoal lusófono», sublinha. «A carreira diplomática perdeu em prestígio, apesar dos aumentos salariais registados nos últimos anos. Os jovens optam preferencialmente por cargos em multinacionais».

Os acordos de cooperação bilateral, assinados por altura dos 180 anos do estabelecimento de relações diplomáticas entre o Brasil e a Rússia, nas áreas da economia e das tecnologias, prevendo a abolição dos vistos para estadias até 90 dias, vão trazer, na opinião de Mendonça João, «postos de trabalho para lusófonos» e «novas perspectivas a quem estuda o Português», mesmo da variante europeia. Nas universidades em que Mendonça João lecciona, ensina-se a norma europeia, mas a literatura brasileira é também ministrada. Algumas faculdades de filologia têm uma cadeira específica da variante brasileira. Também é ensinada literatura lusófona.

Pelo seu lado, «Portugal, nos últimos anos, tem-se aproximado da Rússia, com um volume de negócios em constante crescimento». O investimento português na Rússia quadruplicou nos últimos cinco-seis anos, segundo o professor português, que refere a crescente presença de empresas portuguesas nas muitas feiras realizadas na Rússia - calçado, moda, materiais de construção, etc.

O facto é que, sublinha o docente, os estudantes de Português nestas universidades «são recrutados durante a formação, pontualmente, para trabalharem como intérpretes nas feiras de investimento», o que parece mostrar as potencialidades da LP na Rússia.

Mas há outras formas de chegar ao português, a começar, «por mais incrível que pareça», na sua expressão, pelas telenovelas brasileiras, exibidas na língua original com tradução simultânea sobreposta. Ou pelos ícones do futebol. Ou ainda, regista Mendonça João, através do património, como aconteceu, relata, com «um rapaz a rondar os quarenta», que no ano passado procurava desesperadamente o arquitecto Siza Vieira, ausente por doença na inauguração da sua exposição em Moscovo. «Trazia debaixo do braço o fruto de vários anos de estudo aprofundado da obra de Siza Vieira, e pela segunda vez em cerca de dez anos, o destino negou-lhe» o encontro com o arquitecto português.

Não é caso único no domínio do património. Olga Russinova, historiadora da arte do Museu Ermitage, de São Petersburgo, «estudou as singularidades da Baixa Pombalina, comparando-a com elementos» da cidade fundada por Pedro I. E uma aluna nesta cidade do mar Báltico chegou à LP devido ao seu «interesse pelas peculiaridades dos interiores das casas tradicionais portuguesas».

Português atribuído

Na MGIMO, vocacionada não só para a diplomacia, como para fileiras internacionais da economia, do jornalismo e do direito, as línguas não são um fim em si. Daí que não sejam escolhidas pelos estudantes que as aprendem. São atribuídas - no mínimo duas - a estes jovens pertencentes a um estrato socio-económico elevado, em que poucos acabam por escolher a diplomacia, devido às baixas remunerações quando se encontram no seu país, entre missões de três anos no estrangeiro, explica o leitor do IC.

Há 84 estudantes de Português na Universidade estatal de Relações Internacionais, na sua maioria como primeira língua. A combinação mais frequente é Português e Inglês. Muitos têm uma 3ª e até 4ª língua, que são de escolha livre. João Mendonça João lecciona 4 turmas, todas elas de Português primeira língua, em Relações Internacionais e Jornalismo Internacional. Ministra ainda um seminário de Cultura Portuguesa, adaptado à área dos estudantes e obrigatório para o 3º ano de Relações Internacionais. Completam o quadro outras actividades - concursos de fonética e de tradução e a Festa da LP, um tipo de evento «de alguma dimensão», em cuja organização foram pioneiros os professores de Português, depois seguidos neste tipo actividades pelos outros departamentos da Universidade, segundo Mendonça João.

Diferente é a situação na Universidade Lomonossov. «O público-alvo é de estudantes de filologia que optaram pelo Português, embora alguns o tenham escolhido para facilitar o ingresso na Universidade. Trata-se de um núcleo de estudantes eruditos na área de especialização, e com aptidões para actividades artísticas. A formação, com um «currículo extremamente consistente», no dizer do leitor, é orientada para o ramo educacional e científico, embora pouquíssima gente opte pela via pedagógica - «devido a razões económicas inerentes ao cargo de docente», afirma Mendonça João.

Na MGU, Universidade que só aceita turmas de Português de dois em dois anos, o leitor tem 2 turmas. Uma de 2º ano, onde explora pequenos contos e dá ‘rudimentos da cultura portuguesa\', e uma de 4º ano, com um programa «mais puxado», em que além das aulas de Cultura Portuguesa, prepara os estudantes para o exame final de Literatura Portuguesa. Doze alunos estão inscritos em Português primeira língua (licenciatura). Existem ainda 20 estudantes de mestrado, cinco de doutoramento e nove de Português 2ª língua. Este ano foi a primeira vez que abriu uma turma de Português segunda língua, devido à procura, refere.

No presente ano lectivo, o leitor do IC, «por iniciativa própria», e depois de ter passado a ‘pasta\' das aulas de Português na Universidade Estatal de São Petersburgo a João Tiago Santos, bolseiro ‘Fernão Mendes Pinto\', lecciona também na Academia Diplomática, onde ministra «tradução política do Russo para o Português». «O público é mais maduro, pois a condição sine qua non para ingressar é já ser licenciado», diz. São frequentemente oriundos da província, extremamente assíduos e dominam rapidamente línguas estrangeiras. No final do curso integram o MNE russo e o corpo diplomático.

De uma coisa João Mendonça João está certo: «no ambiente universitário há um ensino de português estabelecido e sistemático». E os resultados vêem-se. Quando chegam os alunos nada sabem e, no entanto, «acabam o curso com uma fluência...»

 

Cinema documental

O cinema documental constitui uma das apostas do leitor do Instituto Camões (IC) em Moscovo, João Mendonça João, para alargar além do universo universitário as actividades de divulgação cultural, abrangendo outros públicos.

Mendonça João já trouxe Sérgio Trefaut (há dois anos) e Margarida Cardoso (em 2008) à capital russa. Este ano pretende levar em Março a realizadora Sílvia Firmino, autora de Queria Ser, filme que evoca o fecho de uma escola no interior do país.

Diferentemente dos anos anteriores, o filme premiado no DocLisboa deverá ser exibido em institutos de cinema, nomeadamente no prestigiado Vkik (Instituto de Cinema e Fotografia de Moscovo) e no Instituto de Cinema de São Petersburgo, para além da Universidade Estatal da antiga capital russa. «Penso que aí é que tem impacto. Dar a conhecer o cinema português a pessoas que se interessam».

O filme de Trefaut, Lisboetas, abordou um tema de grande actualidade na Rússia, lembra o leitor. No campus da Universidade de Relações Internacionais, onde o filme foi exibido, está a ser construído o Colégio Europeu, com fundos da União Europeia, «por cidadãos marginalizados da ex-União Soviética - tadjiques, uzbeques - que vivem em contentores, em condições absolutamente precárias», relata.

Este tema está também presente no filme de ficção América, de João Nuno Pinto, filmado em Portugal, em que participam actores russos e em que João Mendonça João interveio como ensaiador de dicção e intérprete. O filme, a sair em 2009, da produtora Pandora, de António Cunha Telles, tem como base uma adaptação de um conto de Luísa Costa Gomes que aborda a imigração eslava em Portugal. Várias estrelas do cinema russo foram contratadas para participar. «Tem um elenco de actores fabuloso, entre eles a Tchulpan Khamatova, que entrou no Goodbye Lenin, Mikhail Ievelanov e Iuri Iskov. Actores muito conceituados».

Entre as suas actividades ‘profanas\' tem estado também o jornalismo. «Fiz a cobertura das eleições presidenciais de Março de 2008 para a TSF», afirma.

O leitor do IC organiza também conferências, principalmente em torno da Literatura e da História. De sua iniciativa foram vários ciclos dedicados às relações culturais luso-russas. «Foi uma iniciativa pluridisciplinar», com o objectivo de juntar estudiosos russos e portugueses, das áreas da música, da história e da arquitectura.

Para além disso, lançou o projecto apoiado pelo IC de uma antologia de poesia portuguesa dos séculos XVI, XVII e XVIII, que é coordenado pela professora Vanda Anastácio.

Nesta diversificada actividade está a participação num Manual de Língua Portuguesa, para os níveis elementares, com os seus colegas da Universidade de Relações Internacionais. O manual que existe «é usado há 30 anos, todo ele com textos soviéticos, carregados de propaganda».