Um dramaturgo de proximidade

Sente-se como um «escritor» e acrescenta que, para poder fazer esta afirmação, demorou «muitos anos». Manifesta-se mesmo «um pouquinho retraído» perante a ideia de alguém que faz a sua vida com a escrita ter que afirmar o estatuto de escritor. Mas, «é assim que de facto vou fazendo os meus dias», constata, num registo de grande sobriedade, que manterá ao longo de cerca de uma hora de conversa, abordando tópicos que não foi possível aqui todos recolher.

«No grosso do trabalho, eu estou mais no teatro», sublinha Abel Neves, 53 anos, quase três dezenas de peças de teatro escritas e montadas e seis romances publicados, vencedor da edição de 2009 do Prémio luso-brasileiro de Dramaturgia António José da Silva, atribuído pelo Instituto Camões e pela FUNARTE. A poesia, que foi o seu ponto de partida, segundo este transmontano de Montalegre, criado a partir dos 11/12 anos em Lisboa, apenas apresenta um título publicado (Eis o Amor a Fome e a Morte, 1998) na sua bibliografia, mas «atravessa», na sua expressão, o teatro e a prosa que vai fazendo.

Para ele, contudo, o teatro é «o emblema máximo de uma cultura viva». Enquanto escritor de teatro, Abel Neves, que tem repartido a sua actividade também pela pedagogia da escrita dramatúrgica, é um homem que assume um ponto de vista de alguém que está ‘dentro’ do teatro e, talvez por isso, seja um defensor da proximidade dos dramaturgos e das companhias de teatro, uma situação que nem sempre ocorre em Portugal, mas que faz parte da sua experiência de 12 anos no Teatro da Comuna, onde se iniciou há exactamente 30 anos, e no seu trabalho posterior com outras companhias, como aconteceu ainda este ano, por exemplo, com a colaboração estabelecida com a Escola da Noite, de Coimbra, no espectáculo Este Oeste Éden.

«É fundamental a aproximação do dramaturgo às companhias de teatro. E não é só por uma questão de técnica de escrita. Isso é verdade e importante. Mas há uma questão que me parece fundamental, que é o sentimento de se partilhar uma condição de vida. O teatro é de facto uma coisa com as suas especificidades, como qualquer outro universo, até cultural, mas é um organismo vivo muito complexo, muitíssimo interessante e o dramaturgo tem que estar por dentro, viver o miolo do trabalho teatral.»

É que na escrita de teatro, diz, «há uma coisa elementar», mas delicada: quem escreve para teatro «tem que interessar as pessoas que fazem o teatro, para que as pessoas que fazem o teatro possam por sua vez interessar aqueles que vêem o teatro, sem os quais o teatro não faz sentido». Não que haja uma «receita» para fazer um bom texto teatral. Mas, afirma, «há textos para teatro que as pessoas que estão no teatro, ao fazerem uma leitura, percebem pelo ‘cheiro’ se o texto tem uma validade teatral ou não. […] Há textos que têm essa respiração imediata e que nós sentimos e dizemos: ‘bom, este texto tem…’.». E por isso responde naturalmente que sim à tese de que há textos dramatúrgicos que na realidade são mais textos literários.

Mas mesmo com o texto que ‘cheira’ a teatro decorre normalmente todo um processo de trabalho, de adaptação, em maior ou menor grau, com vista ao espectáculo. «Um texto está cristalizado, sofre mutações no ambiente cénico, ou pelas eventuais alterações, mudanças que se fazem às perspectivas cénicas do texto ou até pequenos ajustes de corte», explica. Este trabalho permite ao texto «ganhar as maiores virtudes» e ser usufruído pelo público.

Diferentemente de outros autores, Abel Neves convive bem com os temidos cortes, que diz serem muito comuns no ambiente teatral. «Não me inquieto com isso. Já me poderei preocupar se houver acrescentos. Não é muito frequente, mas às vezes… Julgo que isso faz parte da validade de um texto no teatro».

No teatro de pesquisa da Comuna, «o primeiro grande e bom contacto do fazer teatral» que teve, Abel Neves fez «de tudo», o que lhe permitiu «conhecer os vícios e as virtudes do trabalho do actor – que ajuda a configurar os vícios e as virtudes de quem escreve», segundo considera. Depois, ou outras companhias acederam aos seus textos ou lhe pediram para os escrever, e não só em Portugal, também no exterior. Talvez por isso advogue a importância de se fazerem traduções de dramaturgos portugueses, para que os textos destes possam «ter o conforto de outros ambientes, de outras geografias». «Portanto, tive a sorte de me poder iniciar numa companhia de teatro e ainda hoje os meus relacionamentos normais de escrita passam por trabalhar directamente com companhias».

A necessidade de proximidade entre dramaturgos e companhias não esgota os problemas específicos da escrita de teatro, mas pode funcionar como uma espécie de antídoto para duas situações evocadas por Abel Neves em Portugal, que são a solidão relativa dos dramaturgos e a falta de estímulos que entende existir à criação de texto. «Parece que nos envergonhamos do trabalho que andamos a fazer… Julgo que isso entristece muitas pessoas que andam no teatro. A mim já não me entristece tanto, porque me sinto no teatro, estou no teatro», diz. «Por que razão não temos a vontade de estimular os nossos criadores? De lhes dar uma pancadinha nas costas de vez em quando? De os chamar a encontros para falar com o público, para estimular a conversa sobre aquilo que eles próprios fazem?», pergunta. «Porque de facto isto é um trabalho muito solitário», acrescenta.

Protesta contudo «o mesmo tipo de empenhamento» agora que tinha quando começou, mas pensa que «devia haver muito menos indiferença, muito menos negligência em relação ao trabalho dos dramaturgos» portugueses – cujo número reconhece, é actualmente maior do que há uns anos atrás – e uma presença acrescida dos seus textos nos palcos nacionais, que é hoje menor do que há cem anos. Entende que se deveria mostrar ao público que «há dramaturgos em Portugal e que têm um estatuto igual aos outros» que há lá por fora, mesmo que não tenhamos a «dramaturgia exuberante» de outros países, muito por causa da ausência de uma tradição de palco da dramaturgia nacional. A presença da dramaturgia portuguesa «deveria ter uma normalidade nos teatros nacionais, nas companhias», defende. «Há uma tendência para generalizar que não há uma dramaturgia portuguesa. Já não é verdade», garante.

Nem toda a gente resiste a esta indiferença, até porque a maioria, afirma, recusa atitudes de imposição das suas obras. «Sempre fiz questão, por princípio, de não impor a obra, mas poder afirmá-la. E afirmá-la apenas nas companhias de teatro. Nunca me pus eu à frente dos livros», diz em relação a si.

Convoca por isso as instâncias culturais para esse trabalho de tornar conhecida a dramaturgia portuguesa, como as convoca para apoiarem coisas que considera fundamentais, como seja o que designa pelo «enraizamento de aventuras culturais», em vez das pequenas acções pontuais que hoje dominam o teatro. Dá como exemplo as tentativas que tem feito sem sucesso, desde há oito anos, para criar um centro de formação dramatúrgica em Lisboa, que ultrapasse os «cursos rápidos» em voga. O que pretende é «fazer com que as pessoas entendam a escrita de um modo mais consistente», contrariando a ideia de que «vão fazer umas coisas para televisão, tudo muito rápido, muito veloz». «O teatro – sublinha – precisa de facto de uma outra consistência». E estas iniciativas devem ser apoiadas pelas entidades vocacionadas que têm meios e, «se não têm meios, têm que os inventar».

É assim com naturalidade que, ao lhe ser atribuído o Prémio luso-brasileiro de Dramaturgia, pense que se está perante uma oportunidade para «criar uma dinâmica muito especial» à volta do texto premiado e da circulação do espectáculo, que estimule outros dramaturgos e dê outra visibilidade à dramaturgia portuguesa.

Jardim Suspenso - Sinopse

«Até onde pode levar a fidelidade a alguém num amor que não é correspondido? Joana, jovem arquitecta, não abdica da sua fidelidade e decide abandonar-se, dissolvendo-se na vida, por inacção. À sua volta, no jardim que ela construiu por amor, a família – ignorando a devoção amorosa a Mateus que, não sendo irmão, desde a infância cresceu com Joana – procura compreender o enigma. A vida continua, e o jardim... suspenso.» Ou seja, como diz Abel Neves, «uma história para teatro que tenta apresentar-se simples e, simultaneamente, complexa» e que é também uma história, «da nossa condição humana».

 

A obra em construção

- Presentemente em que está a trabalhar?

- Tenho algumas obras que vão ser feitas agora. Tenho um espectáculo que vai ser estreado pelo Teatro de Montemuro. Estreiam sempre na sua aldeia e vão depois estrear em Vila Real, no dia 30. É um divertimento teatral, que é uma coisa que eu gosto de fazer com eles sempre que possível. Chama-se Saloon ié-ié, o paraíso à espera. […] Tenho nesse mesmo dia uma estreia em São Paulo no Brasil. É um texto curto que me pediram, um texto de 20 minutos, uma coisa que se chama A Mãe e o Urso e que é um espectáculo construído com a contribuição de cinco dramaturgos de geografias diferentes. Sou eu de Portugal, é um dramaturgo francês, um brasileiro, uma uruguaia e uma iraniana. Cinco dramaturgos para um espectáculo único que estreia em São Paulo. Uma coisa que tem um título também longo Da possibilidade de alegria no mundo.

Tenho aqui também no Teatro Nacional em Novembro um espectáculo, um monólogo, um texto que vai ser feito pela Custódia Galego, que estreia no dia 26 de Novembro, que se chama Vulcão. Depois há outras coisas avulsas.

[24 de Outubro]

 

Encarte Camões no JL n.º 145

Suplemento da edição n.º 1021, de 18 de novembro a 1 de dezembro de 2009, do JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias